Garagem dos sonhos: a lenda do Ford GT

Partindo do pressuposto que você acabou de chegar de Vênus, esta é a história. No começo da década de 1960, a Ford estava pronta para comprar a Ferrari. O neto de Henry Ford queria entrar no automobilismo em grande estilo, e os italianos tinham graves problemas financeiros. Parecia, pelo menos para o americano, um casamento perfeito. No entanto, reza a lenda que o velho Enzo preferia vestir um paletó arco-íris a ver seu cavallino cair nas mãos dos norte-americanos. Mesmo assim, apesar de seu gênio, digamos, forte, Enzo não era burro. Ele sabia que ao deixar a Ford fazer uma oferta, conseguiria um aumento na oferta da Fiat, que comprou 50% da Ferrari em 1965. A oferta de US$ 18 milhões de Henry Ford II foi rejeitada. Ford júnior ficou furioso. Ele jurou derrotar Enzo em seus domínios. A Ford queria vencer as 24 horas de Le Mans, a mais rigorosa, desafiadora e brutal corrida dentre todas. Uma corrida que por sinal a Ferrari havia vencido nos seis anos anteriores (de 1960 a 1965). Ford estava tão furioso que ele encomendou pins que diziam ”Ford vence Le Mans em ‘66” e ameaçou demitir qualquer funcionário que discordasse de sua decisão. O carro que nasceu disso é uma verdadeira lenda. O Ford GT40 (“grand touring e 40 polegadas de altura”, um metro no SI) é uma das máquinas mais famosas de todos os tempos. Os carros simplesmente arrasaram a Ferrari, deixando-a para trás em quatro anos seguidos, até ser banido da disputa em 1970. 2003 marcou o centésimo aniversário da Ford. Em comemoração, o bisneto do fundador, Bill Ford Jr., iniciou uma série de protótipos ao estilo GT40 para os salões do automóvel de 2002. Os carros foram projetados por Camilo Pardo, sob a supervisão de J Mays. Segundo contam, as máquinas de motor central não haviam sido criadas para entrar em produção, apenas um exercício de design. Mas os resultados foram impressionantes. Cem vezes mais belo que o novo Mustang e mil vezes mais atraente que o renascido Thunderbird (sem contar os bilhões de trilhões de vezes mais bacana que o New Beetle), os conceitos do GT40 roubaram as atenções dos concorrentes em 2002, levando a Motor Trend a começar uma campanha “Give us our Ford GT”. Com tudo isso, a Ford decidiu construí-los. Já que não possuíam mais os direitos sobre o nome (e depois de esnobar o pedido de 8 a 60 milhões de dólares da Safir Engineering, dependendo de qual lado você acredita), a Ford precisava de uma nova designação. GT 43, que representaria a altura do novo carro, parece estúpido. Assim nasceu o GT. Mas construí-lo com o que? Todos os supercarros começam a partir de seus motores (mas o GT tinha a vantagem de uma carroceria atemporal) e terminam em seus motores. A coisa mais próxima de um motor que a Ford tinha era um V8 modular de 4,6 litros do Mustang, e isso simplesmente não bastava. Ao invés disso, fundiram o V8 5.4 das picapes F em alumínio e adicionaram um supercharger Lysholm. O cabeçote de alumínio foi emprestado do Mustang Cobra R (e do Boss 290 australiano) e adotaram um sistema de cárter seco. A configuração entregava 558 cv e 69,1 kgfm de torque. Em outras palavras, bastante. Mas como nosso amigo Jezza sempre diz, os Estados Unidos têm uma longa tradição de construir monstros para retas. A Ford queria que esse carro também virasse para a esquerda e a direita. Os engenheiros da Ford trabalharam com os especialistas em alumínio da Hydro Aluminum North America para desenvolver o que na época era o quadro de alumínio mais sofisticado no mundo. O quadro consistia de 35 extrusões, 30 das quais foram desenvolvidas exclusivamente para o GT. O chassi tem ainda diversos painéis estampados em uma complexa estrutura. Suas extremidades servem como pontos de fixação para a suspensão double-wishbone. Tanto os braços de controle como os amortecedores são feitos de alumínio extrudado. A construção do motor também é feita com alumínio extrudado. E você precisa ver como o motor “Powered by Ford” se encaixa no cofre. Claro, toda a lataria é feita de alumínio. O FT possui um splitter frontal, um difusor traseiro, assoalho selado e um túnel que passa por dentro do veículo e cria 136 kg de downforce a 210 km/h. O formato também é um dos mais aerodinâmicos de todos os tempos em um carro de produção. Já se cansou? Eu também. Basta dizer que o GT se comporta melhor que seu carro, seja ele qual for. Esqueça a história, o visual e seu significado por um momento. O que mais me impressiona sobre o Ford GT – e o que eu mais quero que te impressione quando for comentar – é o desempenho. Assim como pouquíssimos carros no mundo, os números reais do GT são muito melhores do que os divulgados pela fábrica. A Ford divulgou um número de 0 a 96 km/h pouco abaixo dos quatro segundos e uma velocidade máxima de cerca de 322 km/h. Números incríveis, sem sombra de dúvidas. Mas adivinha? A Car and Driver chegou aos mesmos 96 km/h em 3,3 segundos e alcançou uma velocidade de 340 km/h. Tão incrível quanto é o tempo do GT no quarto de milha (400 metros) de 11,6 segundos com velocidade final de 206 km/h. Para colocar esses números em perspectiva com seus contemporâneos, a Ferrari 360 Challenge Stradale chegava aos 96 km/h em quatro segundos e completava o quarto de milha em 12,4 segundos, com velocidade final de 182 km/h. E a velocidade máxima da Stradale é de apenas 300 km/h. E não pense que o fato da 360 ser um modelo antigo faz do GT um carro ultrapassado. As F430 chegam aos 96 km/h em 3,8 segundos e correm o quarto de milha em 12 cravados com final de 193 km/h. Este nível de desempenho é ainda mais impressionante quando combinados com o baixo peso e o chassi firme. Quão impressionante? A revista Octane andou em um Ford GT em ‘Ring em 7min41s. Isso é rápido. O supercarro americano mais conhecido, o C6 Z06, é 136 quilos mais leve e 1 segundo mais lento. O Veyron dez vezes mais caro supera o GT por apenas dois segundos, assim como o McMerc SLR. Parte da explicação para esses números absurdos está no fato do GT não produzir os 558 cv e 69,1 kgfm de torque. Não, o GT produz muito mais do que isso. Assim como o Shelby GT500 sai de fábrica com os números subestimados, o GT entrega os números divulgados nas rodas! A potência real deve estar na casa dos 620 a 640 cv. A Ford planejou uma produção de 4.500 GTs. Mas como a companhia estava perdendo bilhões de dólares por trimestre naquela época, a produção terminou com 4.068 carros, quando a fábrica em que era produzido (com o Thunderbird e o Lincoln LS) fechou (31 de maio de 2007). Apesar do final triste, não tenho dúvidas que o GT é o melhor carro que a Ford produziu. Melhor até do que o RS200. Fato é que a única coisa negativa que poderíamos pensar a respeito é que não se trata do GT40 original de Le Mans. Mas eu acredito que o modelo novo é melhor. Primeiro, os GT40s são carros de corrida ariscos, enquanto o GT tem ar condicionado e vidros elétricos. Certo, houve uma versão de rua do GT40 que você podia comprar (a Mk. III) mas era feia e lenta. Depois, o GT é muito mais rápido que os originais. E, mantendo o espírito dos GT40s, o supercarro moderno da Ford não devia em nada às Ferraris. Ah, e só para influenciar um pouquinho a sua opinião, Jeff Zwart, que dirigiu a gravação do comercial para o Super Bowl, disse que o GT não só deixou o helicóptero que o filmava para trás, como também que esse anúncio foi a primeira vez em que não precisou acelerar o filme para fazer o carro parecer melhor. Acredito que isso basta.